Friday, September 15, 2006

Crítica: Experimentar um "Dia Maior"


Condenado a sobreviver aos constrangimentos da ordenação do real, a dualidade do corpo produtor/descodificador de signos adquirire o seu significado mais puro no confronto com o Outro. Partindo de um contexto de trabalho experimental, a coreógrafa Né Barros percorre o território das tensões da comunicação e dos sentimentos rumo ao transcendente. Em “Dia Maior”, o tempo reclama a dimensão fragmentada das emoções físicas. Existirá um sentido supremo que encontre no corpo em movimento, veículo do pensamento simbólico, o seu sustentáculo primordial?

Depois do sucesso da proposta “Vaga” (2003), na qual Né Barros explorou inteligentemente ambientes densos e formalizantes, ampliados via “hi-tech” pelo uso expressivo e desconcertante das “malas-monitor”, construindo uma gramática relacional exploratória dos constrangimentos ambivalentes do “corpo-máquina” e das rotas de aproximação e afastamento emocional e identitário com o Outro, a expectativa em torno do mais recente projecto da co-fundadora do Balleteatro atingiu um ponto superlativo no interior da comunidade da dança contemporânea.
Quem alimentou desejos de assistir a um “remake” técnico ou um “upgrade” estético do trabalho anterior ficará certamente desiludido. Co-produzida pelo Teatro Nacional de S. João (TNSJ) e Balleteatro, a nova proposta, assinada pela coreógrafa portuense, não repete fórmulas de sucesso, evita o lugar seguro e confortável do êxito, avançando com ousadia e criatividade para a exploração de novos territórios de pesquisa do movimento, forjados no experimentalismo matricial, no antidesejo da permanência, na mutabilidade dos corpos e na partilha contagiada e contagiante dos significantes.
Despido de tecnologia ambulatória, isento de objectos apêndices em movimento e da rigidez formal e racionalizante do seu trabalho anterior “Vaga”, “Dia Maior”, em estreia absoluta no TeCA, gerado do ventre de um contexto de trabalho manifestamente ensaísta, revela uma sobriedade interpelativa, nua de preconceitos e inspiradora de movimentos, abrindo novos espaços, tão criativos quanto generosos, de acolhimento e procura, de análise e interrogação, prontos a serem ocupados pela epifania do Outro, no confronto das múltiplas relações e sentimentos, na proximidade primária intrinsecamente violenta da paixão e no isolamento social das multidões que anulam o indivíduo face ao seu desejo frustrado, consequentemente, auto-antropofágico e alucinatório.

A contaminação do Outro no acto criativo
Uma das características mais relevantes da coreografia “Dia Maior” pertence ao âmbito da esfera metodológica, contagiada, desde a sua concepção, pelo paradoxo do abandono vigiado, a criatividade num contexto analítico. Pela primeira vez, o compositor Alexandre Soares, colaborador habitual de Né Barros, em trabalhos como “Voom” (1999), “No Fly Zone” (2000), “Exo” (2001) e “Vaga” (2003), sobe ao palco num contexto de um espectáculo de dança contemporânea, assumindo uma (ex)posição e um diálogo constante e permanente com os movimentos de construção corporal dirigidos por esta coreógrada sobre o elenco constituído por sete intérpretes. Ao contrário de “Vaga”, em “Dia Maior” hay banda. Evita-se a gravação, partilham-se, em formato live, signos dentro de uma base narrativa comum em constante reformulação. “Dia Maior” traduz a rendição consciente em direcção a um dinamismo experimental ousado, sustentado por uma rede estrutural genealógica próxima do invisível e inaudível.
Grande parte da composição de Alexandre Soares nasce em palco, resultando de (re)encontros, (re)interpretações e confrontos com a coreografia visceral de Né Barros, que, passível de escrita e fixação, tal como os signos musicais de Alexandre Soares, abre lugar à polissemia, à imagem e à metáfora, gerando infinitos espaços de interpretação, campos aráveis, ávidos de exploração de sensações relacionais de impacto e divergência, numa sintonia relacional com a acção despossuída da coreógrafa como a sua criação, com a sua coisa amada, com o objecto do seu desejo artístico. É neste território aberto que o Dia é, de facto, Maior. A comunicação no e com o outro transforma-se em epifania, em Outro, em revelação na diferença e na complementaridade, perfusão e confronto, muitas vezes violentos, sobretudo urgentes na descoberta de sentimentos e identidades.

A austeridade metafísica do espaço experimental
Apesar de nem sempre explícito ou conscientemente expressado, existe em Né Barros um desejo de encontro com o transcendente, calcorreando o caminho do desconhecido rumo a uma certeza inalcançável. É num espaço nu e austero, desprovido de acessórios e desmembrado de próteses tecnológicas; território utópico destituído de simulações, vazio de convenções arbitrárias, onde se procura o movimento e o som primordiais, representativos de toda uma exploração de relações de proximidade e afastamento. A busca de uma terra, simultaneamente, de ninguém e de todos.
O cenário de “Dia Maior” reflecte essa austeridade fértil, colocando o corpo solitário ou em multidão no centro de todas as atenções como emissor preferencial de signos, como veículo de comunicação com o infinito. É pela carência de significantes, que a comunicação do corpo se torna mais esclarecida e menos ambígua. A atmosfera cénica, plástica, assim como todo o ambiente estético do espectáculo insinua o princípio do despojamento como via para o encontro mais autêntico com o absolutamente Outro. Para tal, urge evitar o excesso de significação e a superfluidade de convenções arbitrárias. É indispensável aniquilar as tentativas de apreensão e ordenamento da realidade, a categorização que suspira pela construção de um universo artíficial, de uma compreensão e comunicabilidade racional alienante e alheia à ontologia humana, abstração que, através de um exercício formalizante, gera na alma um ruído tão agónico quanto alucinador. As consequentes (dis)funções e fugas, os constrangimentos nas relações e identidades pessoais são, desde logo, reveladas nos movimentos construídos e dirigidos por Né Barros em micronarrativas, onde os corpos alternadamente se oferecem e se submetem numa relação de poder, que tem como leit motif o contraste: a luz e as trevas, o interior e o exterior, a felicidade e o descontentamento. O acordar em branco no princípio de um dia qualquer, o movimento que avança por tensões sexuais irresolúveis, a queda abrupta dos corpos na impossibilidade de se cumprirem em si mesmos, a repulsa do encontro com o outro, a disfuncionalidade do físico que se revela incapaz de satifazer o desejo em toda a sua extensão e profundidade, o cansaço da morte como esperança última de um infinito invisível são alguns dos quadros em movimento num “Dia Maior” que nos habita a todos.

Os movimentos curvos do tempo relacional
O tempo é o espaço de encontro entre o corpo e o som.
O tempo, numa complementaridade de contágio com as sonoridades de Alexandre Soares, surge como um espaço coreografável de ligações, emissões e construções simbólicas. O corpo, por influência do tempo, sofre mutações constantes e não lineares, criadoras de transformações na identidade e na comunicabilidade.
Dos círculos formados pelos bailarinos à volta de um outro isolado até à frase: “tive uma sensação estranha durante cinco segundos”, Né Barros vai percorrendo diversas problemáticas contemporâneas relacionadas com a realidade e o tempo: da Relatividade de Einstein à Quântica de Bohr.
O movimento de formalização colectiva de ordenação convencional do tempo entra em rota de colisão com a realidade científica do fenómeno “per si”; o tempo é uma função de vários factores. Abrindo a paleta de constrangimentos interpessoais ao tempo, os desejos predefinidos parecem morrer ao adquirirem a consciência da impossibilidade do real, deambulando sobre situações extremas e agónicas de isolamento, rumo a um cenário próximo da esquizofrenia.
No confronto com o Outro, a construção da teia de relações, em cenas dramáticas, do indivíduo em queda e em reclusão, do eu deprimido e oscilante como o tempo, fisicamente curvo, encontra na estranheza, na disfunção, na ambiguidade, um tempo interior substancialmente diferente do outro exterior.
O carácter simbólico do título “Dia Maior” atribui uma adjectivação de superioridade a um período convencionado de 24 horas, realçando a evidência física do próprio movimento. Existem dias maiores no interior das 24 horas. Algo semelhante concretiza a tosca expressão do vulgo perder tempo, criando uma relação simbólica de poder com o tempo, atribuindo-lhe uma presença preensível, sensitiva e táctil, como imagem de um qualquer outro objecto do quotidiano, passível de desaparecer por entre os dedos de uma mão ou cair inadvertidamente pelo bolso roto de um casaco.
Em “Dia Maior”, o tempo pertence à esfera do abstrato-individual. Né Barros constroi simbolicamente movimentos temporais diferentes que se cruzam, anulam e complementam. Do acordar solitário à interpelação falhada do “tu?”, que ignora a identidade e a presença do outro, existe um espaço de memória que se confunde com a realidade concreta reformulando-a em dimensões temporais diversas.
Sublinhe-se, finalmente, a perfusão do tempo real-imaginado que encontra na memória um operador de metamorfoses. A realidade temporal do corpo imóvel do intérprete que clama por atenção, exigindo um confronto que não se concretiza, é substancialmente diferente do “objecto” desejado em movimento. Num beijo, cada lábio deixa a sua impressão digital na memória.
Neste trabalho de Né Barros, a problemática da memória no e do corpo reaparece em palco de forma ainda mais intensa. Se em “Vaga”, a utilização de tecnologia como extensão sugeria uma memória virtual como simulacro comunicacional estático, rígido, preensível em ruídos fixos, a tendência experimental da metodologia representativa de “Dia Maior” sugere uma reflexão da memória como um movimento dinâmico, flexível, inapreensível e sujeito a acidentes infinitos, como a própria vida.

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